Inventário de tolices que importam

Fotografia por Unsplash

pes descalços

Pés no chão, eu encostava na pele do mundo. Ainda criança, corria pelas ruas e escalava em árvores no centro da cidade. Entrava nos porões em construção e machucava os joelhos nas cercas. Roubava bergamotas. Lembro enquanto bebo um vinho (e talvez porque esteja bebendo um vinho). Na borda da taça escorre uma vontade de pés descalços.

Aos domingos acordava cedo para assistir Formula 1. Depois da corrida, comia churrasco com salada de maionese. Eu sabia as cores dos capacetes, os patrocínios de cada piloto e anotava as colocações de cada equipe. Não dou a mínima para automobilismo hoje, mas pagaria mil garrafas deste vinho por aquele caderno, perdido desde que o passatempo acabou no domingo mais triste de 1994.

A bebida ainda está na metade, mas cabem nela as notas nostálgicas do mundo. Lembranças que seriam tolas, não fossem marcantes como taninos: “Você tem a faca, o queijo e meu coração nas mãos”. A poesia deste verso rasgava a tarde adolescente e eu o repetia na fita cassete dezenas de vezes. Já usava sapatos quando comecei a ouvir músicas em isolamento. E estava na faculdade quando dançava enlouquecidamente no carpete verde de um apartamento na Cidade Baixa: “To the gypsy / That remains / She faces freedom / With a little fear”.

Hoje eu desliguei a televisão, seus seriados inúteis, suas notícias ruins. Preferi sentir saudades de mim, de meus momentos (vergonhosos inclusive), minhas manias  e até de minhas tristezas. Um adorável inventário onde encontrei lembranças e objetos, como por exemplo uma pasta de escritório, onde arquivava letras de músicas, as quais fingia vender para grandes gravadoras. Uma foto onde me achava linda, só porque coloquei uma faixa colorida no cabelo, apesar das espinhas e do aparelho dentário. Encontrei testes bobinhos de revistas femininas igualmente bobinhas, que me faziam imaginar a mulher que um dia seria (felizmente imaginei errado). Encontrei também muitos poemas, rascunhos de versos borrados com lágrimas clichê, tortinhos e imaturos como deveriam ser quando a autora tem quinze anos.

Agora que o vinho acabou e antes que eu lembre de algumas bobagens mais sérias, peço licença para ligar a TV.

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Luz no início do túnel

20170514_1901571.jpgArte: Rogério Weber Kirst

Minha mãe varre o chão enquanto finjo dormir no sofá. Meu pai chega e comenta algo sobre como eu pareço cansada. Adoro estar em casa e ainda não ter tirado o uniforme da escola. Sinto fome, mas a preguiça é e sempre será irresistível.

Esta é uma cena antiga, armazenada como um pequeno vídeo aqui dentro de mim. Se a descrevesse amanhã, talvez os mesmos detalhes não seriam lembrados. Pequenas memórias são flashes que inundam meu cérebro. Arquivos que, se fossem colados uns nos outros, transformariam-se em filmes ou seriados particulares. Por ora, são apenas pedaços de uma vida em vídeos independentes.

Esforço-me para encontrar outros ângulos e experiências, pois sinto que me transformo a cada recordação. De certa forma é angustiante saber que vivi momentos dos quais não lembro ou pensar que muitos fragmentos de minha existência estão em memórias alheias.

Seria uma estupidez andar por aí farejando arquivos? Ainda não sei. Nesta busca há um túnel escuro, onde alguns anos somem por completo.  Dizem que esquecemos certas coisas por conveniência e consertamos outras memórias a nosso gosto ou para o nosso bem estar. Pensar nisso é cansativo.

Ao vasculhar lembranças percebo que vou armazenar algumas memórias da minha filha. Serei responsável por filmar e editar algumas de suas primeiras experiências. Como irei, lá no futuro, contar a ela o que agora vejo? A resposta é tão abstrata quanto são os meus primeiros passos, mas desde que ela nasceu uma pequena luz está acesa no início do meu túnel. Agora, ao menos, posso imaginar meus primeiros anos de vida enquanto a observo.

Assim, de carona, redescubro vivências: o contato com a água, esquiva e a mesmo tempo invasiva; o cubo de gelo que, em sublime contradição, machuca os poros e alivia a dor; o sentido das saias, que ao serem colocadas no corpo, instantaneamente nos vestem com a liberdade.

Relembrar é sem dúvida viver, mas redescobrir é ampliar a intensidade das experiências.

Assim eu rodo, em saias e lembranças que se misturam e não sei se são minhas ou dela.

 

Crônica escrita em julho de 2016.

{Em julho de 2016 Cecília tinha um ano e dez meses, já havia descoberto a fugacidade das bolhas de sabão e a maciez do algodão. Não resistia aos cubos de gelo. Queria tocar em todas as árvores e todas as folhas. O mundo aparecia em todos os seus sentidos.}

Portas abertas

IMG_0378As seis e vinte da manhã o ar é um grande bocejo. Além de um gato negro, poucos se aventuram na rua: o tio do tênis Nike, os dois caras de mochila que conversam sílabas, o sujeito de fone de ouvido e cara aborrecida, o entregador de jornais e eventualmente Jorge, que parece violento, mas desde que vive na rua, é a única vítima dos próprios berros.

Em meio a quase poesia das cores matinais, entre o canto de um bem te vi e a resposta de outro, observo os cuidadores de idosos saindo de algumas casas. Este é definitivamente o horário das trocas de turno.  Nestas residências há pouco movimento e seus moradores são como vizinhos misteriosos. Inusitadamente, numa dessas manhãs, uma senhora de cabelos brancos espiava por sua vidraça o movimento da rua. Fixou em mim por alguns instantes seu olhar sério.

Enquanto giro em ponteiros inquietos, pergunto-me o que fazem ela e os outros idosos do bairro? O que pensam e o que almejam enquanto sonho com um tempo livre? Sinto um abismo entre quem sai para trabalhar e os que ficam sozinhos e por vezes enfastiados em seus alpendres. Será que aprendemos como poderíamos com quem já percorreu nossos caminhos? Essas grandes cidades, inventadas para andarmos enlouquecidos de um lado a outro, parecem segregar sistematicamente as crianças, os adultos e os idosos ao longo do dia. É utópico e talvez seja efeito do sono da manhã, mas imagino meu bairro com todas as portas abertas. Assim como era (ou fantasio que era) o bairro da minha infância.

Ao lado da minha casa mora uma outra senhora que costuma sentar numa agradável varanda ao entardecer. No inverno não a vejo, mas no verão ela abana cada vez que passo ali. Eu sempre a cumprimentava e falava algumas palavras, até que um dia ela sinalizou que não conseguia ouvir. Mantive os gestos e percebi a irrelevância das palavras. Sem que exista qualquer história passada entre nós, seu sorriso simpático e significativo é claramente necessário para mim. Sinto sua falta no inverno e este sentimento humaniza a calçada por onde devo prosseguir.

A janela

ganeshaEntrei tímida na sala e estendi meu tapetinho no fundo, à direita, quase detrás da porta (eu não sabia que era o melhor lugar). O dia já havia enchido seus copos, era hora de derramá-los sobre as luzes do sol. Era hora de tomar a noite aos goles, de preferência sem a artificialidade das lâmpadas, sem os ruídos irritantes dos televisores. Ao fechar os olhos e aprumar as pernas para ficar em posição de lótus, percebi um sopro de vento fresco nas costas. Como um amigo que cutuca, o mundo contava-me seus planos de chuva.  Foi quando percebi que estava na frente de uma enorme janela, destas que nem caberiam nas esquadrias padronizadas dos condomínios.

Disfarçada por uma cortina onde balançavam Shiva e Ganesha, a janela era poética e ao mesmo tempo misteriosa. Um retângulo que abraçava minha timidez geométrica. Uma ponte para espiar o mundo enquanto eu procurava janelas em cômodos internos.

Trikônásana, o corpo suava. Katikásana, o corpo doía. Chatuspadásana, o corpo fervia. Shavásana, a melhor chuva em anos aconteceu porque meus olhos estavam ocupados e não podiam chorar. Era uma terça-feira singela e eu voltava para o ioga. Eu sentia câimbras e relembrava que elas não importam tanto quanto a forma de encará-las. A vida é repleta de machucados que não nos representam como nossas reações o fazem. Eu relembrava como é ser uma montanha, um cachorro e um leão. Como há dignidade e inteireza nas quedas. Como é bom cantar um mantra por todos os seres ao invés de orar por si próprio.

Era uma singela terça-feira e aconteciam chuvas e raios e sóis ao mesmo tempo em paisagens dentro e fora de mim.

Jogo da Vida

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Eu organizava as peças do jogo da vida como se ensaiasse para um futuro distante. Não era apenas uma brincadeira, era uma chance de apalpar o poder adulto. Guiava meu carrinho com seriedade. A roleta e suas dez possibilidades eram as faces de um destino em números. Ela era incisiva em suas decisões, traçava idas e voltas e ensinava que andar nem sempre é para frente.

No jogo, aprendi que o sucesso está a uma casa do fracasso, que encher o carrinho com seis filhos e ser professor não é um bom negócio, melhor é ser médico e investir na bolsa de valores. O jogo não me dava a chance de realizar muitas escolhas, ele decidia qual seria a minha profissão e travava as alternativas amorosas. Passando em frente à igreja, o pininho azul tinha que entrar no carrinho rosa obrigatoriamente. O objetivo mais nobre era ser magnata. Se não fosse possível, o ganhador era simplesmente o mais rico ao final. Quem decretasse falência, deveria se retirar ao campo e virar filósofo (hã?).

Ainda guardo meu exemplar do jogo em uma caixa empoeirada. O tabuleiro colorido preserva as impressões digitais dos meus dedos pequenos. Lá estão meu primeiro carro, meus primeiros filhos e minha primeira casa.

Hoje, porém, eu jogo num tabuleiro diferente. De certa forma, decepciono a menina que ensaiava seus passos naquela trilha previamente desenhada. Não sou médica, nem advogada. Filhos, só uma. Nenhum cartão de riqueza, nem seguro do carro. Estou mais para filósofa do que para magnata. Prefiro o campo à cidade. Em comum entre o jogo antigo e a minha vida, estão as idas e vindas e algumas casas onde paro em função da sorte. No jogo atual, volta e meia decido onde estaciono meu carrinho. Sem ensaiar, sem a pretensão de ganhar e, principalmente, sem querer chegar ao final do tabuleiro.

Escrita em 2010.

Rezar como uma menina

blaArte: Rogério Weber Kirst

Eu queria escrever uma crônica sobre o ano novo, mas tudo o que eu sinto é tão velho quanto a humanidade. A única certeza que tenho sobre o porvir é a repetição dos sentimentos: medos, angústias, esperanças, alegrias.

Mudanças não são regidas por calendários ou astros. Elas partem de cada consciência, de cada cabeça posta em um travesseiro ao quase dormir. Para planejar a vida, é importante esquecer as agendas e abraçar a cama.

Afinal, os problemas jamais darão trégua — ao virar do calendário continuaremos expostos aos mesmos dramas. Em janeiro tomarão posse novos políticos de ultrapassado caráter. Alguém querido ficará chateado com um exame ruim. A violência de unhas grossas arranhará pessoas que nós amamos. Irritantemente, pessoas continuarão a julgar a bondade ou a maldade por grupos ou ideologias, esquecendo que estes comportamentos são individuais. As ruas e as redes serão usadas como instrumento de intolerância, de ofensa e de manipulação.

A literatura continuará em decadência, assim como o pensamento e as diversas artes. Nós veremos e ouviremos poucos cientistas, filósofos e intelectuais, pois na televisão e na Internet se sobressairão as celebridades vazias e nada talentosas. As guerras não findarão, nem o planeta respirará ares sem gás carbônico e metano.

Entretanto, este texto tão deprimido e castigado por um 2016 obscuro, ainda acredita na luz que pode ressurgir em cada criado mudo. Minha avó, a mais querida do planeta, sempre rezou muito por seus afetos ao pé da cama. Ao contrário do que já pensei, rezar não é apenas uma questão de fé, nem uma forma de terceirizar os consertos do mundo.

Rezar é amor puro, é refletir sobre o que enfrentam aqueles com quem nos importamos e ponderar se amanhã faremos algo a respeito. Rezar é revisitar as próprias posturas e pensar em mudanças de comportamento, em novas estratégias para o amanhecer. Os anos vão e vem, mas só dentro de nós decidimos se eles serão como ondas, que simplesmente estouram na margem.

Há formigas pequenas porém ativas neste mundo insano. As pessoas positivas, transformadoras, generosas, engajadas e opinativas (de modo respeitoso) quase não frequentam a mídia pois não rendem likes e cliques. Quero acreditar, procurar e copiar estes humanos que não acordam apenas para respirar, consumir e gerar lixo.

E voltando ao ano novo, em primeiro lugar porque todos nós sofremos em 2016, mas especialmente porque amo minha avó, minha única e verdadeira resolução para 2017 é voltar a rezar como quando eu era menina.

Janeiro de 2017

A tampinha da laranja

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Arte: Rogério Weber Kirst

Descasquei, pela primeira vez, uma laranja para entregá-la inteira a minha filha (ou quase isto, pois não resisti e removi as sementes). Não é fato relevante que se publique em jornais, mas ao realizar este pequeno ato, algo que não faria para mim por pura preguiça, sem querer sobrevoei lembranças que estavam dormindo, como as das inúmeras frutas descascadas pelo meu pai durante minha infância.

Logo antes de entregar-me uma laranja, ele cortava uma fatia de uma das extremidades e criava uma espécie de tampinha presa ao restante da fruta. Eu começava a comer exatamente por esse pedaço, uma provinha que denunciava como seria o restante, mais ou menos ácida, mais ou menos doce.

Criar a tampinha era apenas um gesto singelo, embora significativo, porém existiam outros que eu amava, como o buona notte antes de dormir e o colinho depois do almoço. Um bom pai não precisa levar seus filhos a Disney, a grandes cidades ou a museus fantásticos. Basta que espalhe seu afeto nas escadarias da casa.

A adrelina e a endorfina produzidas pelas montanhas russas não superam o poder incluso em atos de carinho. Eu gosto de conhecer o mundo, mas cada vez mais descubro que as maiores emoções estão dentro de mim.

Aproveitar a vida é um conceito relativo. Não me convidem para snowboard, paragliding, escaladas ou bebedeiras, apenas dividam comigo preciosos afetos.

Hoje enxerguei paisagens lindas ao descascar uma simples laranja. Isto deve ser parecido ou igual a felicidade.

Escrita em novembro de 2016.

 {Cecilia tem dois anos e dois meses. Gosta de ir ao supermercado para comprar “frutinhas”. Suas preferidas são laranja, uva, manga e melancia.}

A Lua não veio

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A lua não veio, mamãe.

Fim de tarde, o céu ainda claro, a primavera a suplantar o inverno. Como explicar?

A lua vai chegar mais tarde, com a noite e as brilha brilhas.

Daqui a pouco minhas respostas não serão convincentes. Seus porquês virão em série, como testes de revista a provar que eu estudei o suficiente para um dia, entre outras realidades, ser sua mãe.

Como o Sebastião daquela música, você me perguntará porque iremos viajar no verão.

E eu viajarei na Wikipédia, lerei novamente os clássicos, estudarei o céu e solstícios, a biologia marinha, o fitoplanctum, Marx, Lenin e Lenine. Mesmo assim eu não serei capaz de lhe dar todas as respostas.

É a tal incompletude humana, que nos move a sermos um pouco melhores hoje do que ontem. Por sorte o ensinar não se resume às explicações, envolve sobretudo a elucubração e a transformação do que está sendo discutido.

Meus pais, por exemplo, ensinaram-me a cultivar uma horta de mãos sujas. A bibliografia nem sempre importa.

O calendário já está ansioso porque um dia você vai descobrir que também me educa, mesmo que eu tenha nascido trinta e cinco anos antes, mesmo que eu tenha sido sua casa por um tempo.

Todo filho, em algum momento, percebe que seus pais são apenas luas em órbita, ora imponentes, ora minguantes. Cheios ou incompletos. Sábios ou inseguros. Assim como o móbile de sóis amarelos em seu berço, que você chama de “Céu da Cecília”, estamos todos dançando, sujeitos às mudanças de estação e às aleatoriedades do universo.

Escrito em agosto de 2016.

{Cecília tinha quase dois anos quando começou a procurar no céu a Lua, as estrelas – brilha brilhas – e o sol. Enquanto ela segue a descobrir os astros e as diferenças entre o dia e a noite, cientistas realizam suas descobertas espaciais. Em 2016 foram revelados nove planetas fora do sistema solar que poderiam apresentar condições para a vida.}

 

Uma carta incômoda

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No último mês de outubro, enquanto distraídos discutíamos os mais recentes e não derradeiros casos de corrupção, o relatório Every Last Girl, da organização Save The Children foi divulgado ao mundo e chegou ao Brasil como uma carta incômoda.

O documento coloca o país entre os piores cinquenta do mundo para se nascer mulher, entre cento e quarenta e quatro analisados. Entre as causas estão os altos números de casamentos infantis e de meninas grávidas na adolescência.

O Brasil ficou atrás de países como o Paquistão, o mesmo da não mais menina Malala, e próximo ao Haiti, o qual conhecemos por suas fragilidades econômicas e sociais. Eu recebi a notícia com espanto, olhei para minha filha e tomei o cuidado de somente pensar: este não é o país que eu imaginei para você. Bem, esta foi a minha primeira reação. Logo conto a segunda.

Ano de 2014. Uma conhecida conta-me sobre uma vizinha adolescente, grávida pela segunda vez enquanto ainda amamenta o primeiro filho. Está atônita por causa do diálogo que teve com a jovem, aliviada por não precisar estudar e trabalhar.

Ano de 2015. Uma amiga recebe a visita de uma mulher que passa de porta em porta oferecendo uma criança ainda no seu ventre. A mãe é adolescente e consumidora de drogas, quer entregar o filho no dia do parto pois não almeja ser mãe (talvez nem entenda a dimensão do fato).

As duas histórias são verdadeiras e têm em comum o cenário dos bairros marginalizados, cercados por todos os tipos de problemas sociais e estruturais. Vivemos rodeados destas realidades, nem sempre visíveis, mas no mínimo audíveis através de vozes muito próximas. Se não percebemos, é porque nos acostumamos ou nos protegemos em nossa rotina.

Minha segunda reação foi justamente refletir e entender que o resultado do relatório não é tão espantoso. Nosso país está há muito tempo distante das condições educacionais, estruturais e econômicas necessárias para que todas as meninas cresçam em altura e propósito com réguas idênticas. Uma gravidez ou casamento precoces, que infelizmente são portas para a violência doméstica, a dependência financeira e outros problemas, ainda são para muitas adolescentes os únicos futuros possíveis ou vislumbrados.

Antes que o mundo nos avisasse, deveríamos ter cuidado de nossas meninas. Prefiro pensar que ainda é possível, que pequenas ações afetam crianças próximas ou não de nossas casas. Afinal, é cansativo esperarmos em vão por governos imbuídos de seus projetos de poder, ocupados de seus processos judiciais e conluios.

 Se você ficou curioso a respeito do relatório da organização Save the Children:

http://www.savethechildren.org.uk/resources/online-library/every-last-girl

A biblioteca do Frei Caneca

                                                                                                                                     Selected by freepik

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            O lugar mais importante do mundo (ao menos do meu ângulo emocional) é a pequena biblioteca da escola Frei Caneca, lá na rua Maria Dal Conte, na pequena Flores da Cunha.

           Silenciosos eram os minutos em que, sossegada, eu percorria contracapas e ilustrações em busca da próxima leitura. Hoje entendo que era gigante a pequena estante de livros, assim como o ritual envolvido: escolher um título, preencher a ficha de entrega, procurar por eventuais rabiscos de colegas nas páginas e por vezes espiar o último parágrafo.

            “Livros são os mais silenciosos e constantes amigos”, definiu Charles Elliot. Lembro-me de preencher listas com o nome das obras lidas, seus autores e uma pequena avaliação de gosto: bom, ótimo ou regular. Na quinta ou talvez sexta-série, minha lista de amigos de papel chegou a trinta e nove exemplares no ano (número digno de uma orgia literária para um adulto). No Frei Caneca, conheci as clássicas coleções Vagalume e Reencontro; os livros regionais, como os do Charles Kiefer; e sem saber da existência da palavra catarse, mergulhei nos poemas de Drummond.

            A seção de poesia era minúscula­ ­­— nada diferente de qualquer livraria — e nela conheci o Quintana pelo título curioso “Caderno H”. A obra tornou-se quase um livro de autoajuda tamanha a sagacidade das frases curtas. Em meio ao tédio da pré-adolescência, não recordo de outro livro que eu tenha folheado mais.

           “Canção Quase Inquieta”, o poema de Cecília Meirelles, foi outro tesouro que a biblioteca me entregou e é uma prova de que a literatura é uma das poucas riquezas compartilhadas pela humanidade. Este poema é o único que decorei até hoje e eventualmente ainda o sussurro: “de um lado, a eterna estrela / e do outro a vaga incerta, / meu pé dançando pela / extremidade da espuma / e meu cabelo por uma / planície de luz deserta…”.

             Cecília me abraçou ainda criança e é dela o nome da minha filha. Queria ter muitos filhos para presenteá-los com os nomes dos autores que transformaram meu destino desde aquela época: Quintanas, Drummonds, Melvilles, Vernes.

             Uma biblioteca no interior é uma prova contundente e inquestionável de que livros são janelas, assim como a frase clichê repetiu. É a certeza de que haverá pensar num mundo rodeado de entretenimentos espetaculosos e por vezes escravizantes. Acredito no poder reflexivo e questionador dos livros, seus atalhos à imaginação, seus parentescos com a filosofia; as ideias discutidas em silêncio, o tempo infinito para assimilação, o despertar de memórias. Ainda, a liberdade da discordância (que nem sempre a discussão falada respeita) e por fim, o pensamento crítico fluído e transformador a salvo de um mundo atarefado e frenético.

Escrita em Julho de 2016.

Crônica vencedora do 12º Prêmio Literário Mário Quintana  – categoria regional