Missing Scout

Arte por Rogério Weber Kirst

Coragem é fazer uma coisa mesmo estando derrotado antes de começar — prosseguiu Atticus. — E mesmo assim ir até o fim, apesar de tudo. Você raramente vai vencer, mas às vezes vai conseguir.” Harper Lee

“O Sol é para todos” está na minha lista de livros especiais. Tanto que as vezes me pego revisitando algumas páginas; sinto legitima saudade de Scout, a criança curiosa que também é a narradora da história, o que torna o livro absolutamente singular ao colocar um observador inocente em frente a questões sociais complexas. Além das problemáticas centrais – racismo e injustiça, Scout ensina sobre autenticidade e coragem. Adoro o fato de que Atticus, o pai de Scout, é uma das minhas maiores inspirações para a maternidade (palmas para a literatura), pela forma respeitosa com que conversa com os filhos, não subestimando a a capacidade de entendimento das crianças e suas opiniões. Atticus evidencia, pelo exemplo, que o melhor para o mundo passa bem longe de vencermos ou não uma discussão; é preferível beirarmos a verdade e a justiça – o que só alcançamos ao nos humildarmos perante o conhecimento.

Scout é uma personagem que de certa forma representa a esperança. Penso que, espelhos dela, milhares de crianças reais merecem a nossa evolução, como pessoas e como sociedade.

Por isso eu escolho a coragem como ferramenta de Ano Novo, a fim de materializar a simbologia de um calendário renovado. Num mundo poluído pela massificação de ideias, hábitos e vícios, tecnológicos ou não, é preciso ter a coragem de uma criança exploradora para restaurar, na lente dos olhos, uma pintura genuína da vida ao nosso redor e, principalmente, da nossa humanidade. A coragem de nos mostrarmos uma obra em execução, onde nos esforçamos para apagar as próprias falhas e preconceitos, onde reconhecemos nossos privilégios, onde rabiscamos e arriscamos novos traços, onde buscamos entender nossas legítimas aspirações, contrapõe-se a arrogância e a covardia dos quadros estáticos e suspensos. É preciso coragem para sermos pinturas vivas e inspiradoras. O caminho é trabalhoso, por vezes impopular a ponto de desagradar algumas plateias viciadas, mas o dinamismo de alguma evolução, por menor que seja, parece combinar mais com a própria natureza da qual somos parte.

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O mundo vai acabar?

Crônica publicada no Jornal Zero Hora em 17 de novembro de 2021.

Já é a segunda vez que a minha filha Cecília, de sete anos, pergunta-me sobre o fim do mundo. Na primeira, o gatilho foi a sua primeira experiência com a morte. Se nós somos seres finitos, por que o nosso mundo não seria? Contraditoriamente, a segunda abordagem, emergiu de uma discussão sobre a existência do infinito – ela notou que jamais conseguiria contar todos os números – e esta conclusão a fez questionar a imensidão do mundo.

                É difícil dar respostas quando não as temos, ainda mais para crianças que tanto as anseiam. Pior é omitir meu real receio, não relacionado ao planeta em si, mas a extinção de nossa espécie. É cedo para contar-lhe sobre a insônia que tive, em 2017, após assistir a uma sessão do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change), onde os pesquisadores explicaram, de forma detalhada, as consequências catastróficas, como grandes crises migratórias, caso não se cumpram as metas de redução de emissão de gases.

                Tampouco devo contar sobre meu choro disfarçado, quando, em plena pandemia ouvi: “Mamãe, porque as florestas estão queimando?”, situação que se repetiu há poucos dias, quando assistimos juntas ao filme “Ainbo, a Guerreira da Amazônia”, infelizmente longe de ser uma ficção.

                 Acredito que não é preciso ter filhos para termos uma preocupação contundente com as próximas gerações, mas ao menos em mim, a experiência materializa a angústia. É triste constatar que a pauta ambiental é pouco valorizada no país que poderia ser líder mundial em energias renováveis e sustentabilidade – é sabido que estes pilares levarão ao desenvolvimento econômico e social no futuro. Ao invés disso, a crise energética, a escassez hídrica e o aquecimento global passam longe das prioridades do Legislativo e do Executivo, aliás, representado pobremente na última COP26, vide a ausência de planos tangíveis e do próprio presidente.

                Eu não posso acreditar que o mundo irá de fato acabar, mas toda vez que Cecília questiona, o tempo parece encurtar.

Colares de sol tardio

Foto: acervo pessoal

Falavam, mas eu não percebia a luz do outono tão flava. As dezoito horas as árvores vestem colares de sol tardio. Eu emoldurava as estações do ano com fotografias de outrem, usava símbolos como as folhas secas de um plátano. Nem sequer notava que o ar de abril, além de refrescar vigas e pilares, é capaz de infiltrar na pele cheiros agudos de cascas e brisas.

De repente, fechei os olhos (somente os do rosto) e escutei a dança da paineira: galhos d’água embalados no vento. Há marulhos no quintal.

Não sei se foi a meditação ou o medo de perder o próximo outono, mas meus sentidos espicharam como adolescentes.

Eu fiz com minha filha um bolo de cenoura, cujo cheiro inundou a vida inteira. Da mesma forma, uma risada matinal do meu bebê tornou-se o amuleto contra a escuridão de todas as madrugadas.

Há “esta beleza insuportável da coisa inteiramente viva”, tão bem escrita por Caio Fernando Abreu e tenho chorado ao pensar em quem não irá mais senti-la; ou pior, em quem não consegue suporta-la e seguirá dopando sua existência com quaisquer artifícios.

Estamos tristes num mundo belo. Acendo velas de otimismo, limpo vidros para enxergar horizontes, rezo como quem só sabe pedir, mas as pernas já não aceitam passos tão curtos. Agora que o espelho finalmente mostrou-me alguns cabelos brancos, agora que estou pronta, que enfim percebo os poentes, preciso caminhar.

Cor do Sol

Ilustração por Cecília Conz Kirst

“Sou mais esperta do que você, mamãe.”

Eu sei e assim desejo, mas para minimizar sua altivez, ao ouvir tal frase, expliquei-lhe indiretamente a importância da humildade, de que pessoas sempre tem o que aprender umas com as outras. Enfim, este é meu papel nesta história.

Cecília está aprendendo a ler e a escrever. Aos poucos, corrige as palavras e expressões que costumava usar erroneamente. Nunca ousei consertar o seu inspirador “cor do sol” e inclusive incorporei a palavra composta no meu dia a dia. Aliás, penso que o português poderia ser atualizado dinamicamente com a lógica das crianças, as quais adaptam a linguagem ao sentido de suas descobertas.

“Desbagunçar”, “caienta”, “odeiei”, são exemplos de construções que em breve ela abandonará, mas que estarão mais do que corretas no meu dicionário materno (e eterno).

Cecília está vivenciando uma explosão de descobrimentos. Enquanto brinca, faz dezenas de perguntas e afirmações. “Eu sei porque os carros baixos andam mais rápido.” “Eu sei porque a ponte móvel existe.” “Para que existe a Lua, se ela não ilumina o mundo?” Cecília também exige que seja incluída em todas as conversas: “Não falem mais deste assunto sem me chamar!” Às vezes o assunto é o conserto do aquecedor a gás.

E agora faz perguntas difíceis sobre os noticiários: “Mamãe, o que é índice de aprovação do presidente?” “Por que as florestas estão queimando?”

Cecília também está observando o mundo com empatia e senso crítico. Disparou, ao ver os operários de uma obra ao lado da nossa casa, num dia de inverno: “Eles não podem trabalhar hoje, está muito frio!”

Barcos a vela também conseguem navegar contra o vento. Assim vejo as crianças, com suas mentes curiosas, criativas e puras atravessando um mundo cheio de turbulências, porém de ideias retilíneas.

Hoje é o aniversário de Cecília. Enquanto ela apagar sua vela ao desejar algum brinquedo, não saberá que dentro de mim, há seis anos, existe uma chama indelével e orgulhosa, com a qual farei um pedido: vou desejar que ela sempre seja mais esperta do que eu. Que a sua curiosidade e espontaneidade sempre a acompanhem, seja com o vento contra ou a favor.

Crônica escrita em 03 de setembro de 2020.

Cecília completou seis anos em um dia chuvoso e em pleno isolamento social. Mesmo assim, seu dia foi alegre e colorido. Cecília pulou, cantou, correu e abriu presentes.

O Sorriso de Caio

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Que Monalisa que nada! O sorriso preeminente em minha vida é o do Caio.

Em plena pandemia – na verdade um pouco antes dela, já que estamos confinados desde que ele nasceu, há alguns meses – Caio deu seu primeiro sorriso tímido numa manhã de domingo. Desde então não parou.

Caio sorri ao acordar, ao tomar banho e nas trocas de fraldas. Sorri até ao despertar aos prantos na madrugada, quando nota que alguém o acudiu. Sorri quando está se contorcendo de dor de barriga, se você o provocar com uma brincadeira.

Mas há algo especial no seu riso além da frequência – uma doçura que espelha sua personalidade. Em seu rosto de apenas quatro meses, olhares e sorrisos combinam-se e transmitem amorosidade. Vai ver é somente um derretimento do meu coração materno e exagerado.

Quando Caio morava em mim, eu sentia um certo receio pela sua calmaria. No entanto, foi uma dadiva tê-lo tido como um visitante tranquilo em meu ventre, enquanto a vida sacudia-me num pandeiro sobressaltado. Seu sorriso remansoso é tudo o que eu preciso receber e repercutir ao mundo neste momento.

Você pode dizer que Caio sorri porque sua ingenuidade é alheia ao que está acontecendo lá fora: juntamente com uma pandemia sem precedentes, estamos sendo bombardeados pela ignorância politica diária, o egoísmo fantasiado de liberdade individual, a crise econômica, as milhares de mortes, a negação da ciência e a destruição impudente do meio ambiente.  Entretanto, quando um bebê reage com alegria e ternura a olhares, palavras e gestos de carinho, ele nos relembra de algo básico sobre nossa espécie, que nos acompanha desde o nascimento: somos movidos e nos desenvolvemos desde a primeira infância devido ao amor e ao afeto. Esta simples verdade que Caio escancara diariamente pode ser o motivo pelo qual devemos salvar-nos; afinal, se estamos a espera de uma vacina que nos cure completamente, alguns antígenos estão ali, nos primeiros meses de nossas vidas. 

Junho de 2020

Caio nasceu em Janeiro de 2020. Quando nos preparávamos para seus primeiros passeios, o isolamento social devido ao vírus COVID-19 iniciou em Porto Alegre. Desde então, Caio está confinado e aprendendo sobre o mundo pela perspectiva de uma só casa. Enquanto vibramos e sorrimos com suas primeiras experiências e descobertas, os jornais escancaram tristes notícias e os cientistas e profissionais da saúde trabalham como nunca.

Caio já nasceu

Foto por Gane Coloda. GC_VaneCaio-148

Entre as convenções já criadas neste mundo, está a de que uma pessoa nasce quando sai do útero de sua mãe. Deixarei o cartório pensar assim, mas o aniversário de Caio será antes, ao menos para mim. Caio nasceu quando começou a soluçar, o que ocorreu há uns dois meses. Você poderia dizer que uma pessoa não nasceu se ela soluça após as refeições? Nós comemos, ele soluça.

Caio parece calmo, como um peixe tranquilo de caudas para cima. Poucas vezes chuta minhas costelas e quando o faz, é com delicadeza. Ao contrário de sua mãe, fica agitado com música e ioga. Gosta de ficar enrolado com os pés e mãos na cabeça e daí surgiu seu apelido: tatu-bola. Afinal, alguém que já nasceu pode ter um apelido. E o fenômeno é visível: quando deslizo as mãos pelo lado direito da minha barriga, uma bolinha aparece e desponta, como se ele fosse realmente um bichinho enrolado e arrepiado.

Caio já tem oito meses de vida – por isso entendo que, por mais que meu ventre estique e estique, neste ponto nós dois estamos espremidos e cansados. Ele reclama se durmo virada para os lados direito ou esquerdo. De barriga para cima, concorda apenas se a coluna ficar bem ereta, o que torna nossas madrugadas insones e com frequentes negociações.

Ao dividir com ele meu corpo, minhas horas, meus nutrientes, amplio meu cansaço e aprendo que estarmos vivos, dentro ou fora de um útero, requer abraçarmos a multiplicidade das experiências, suas dificuldades e seus prazeres. A vida real aperta, espreme e ao mesmo tempo abraça e conforta. Haja coragem. Compartilhar a vida com um novo ser, seja através da experiência da gestação ou não, é desconfortável e as vezes dolorido. Mas não há outra estrada que nos prepare e nos direcione melhor para o afeto e a entrega, forças humanas tão poderosas, que fazem valer uma existência e já me fazem amar Caio apenas por senti-lo soluçar.

Fora do Pódio

Publicada no Jornal Zero Hora em 15/06/2017

Quando a corrupção corre na frente, todos perdem a maratona. As figuras dos ramos político ou empresarial, envolvidas em escândalos, parecem argutas, mas ao passo que engrossam fortunas, submetem seus próprios descendentes à persistência no terceiro mundo. Por mais privilégios que possam ter, os familiares dos corruptíveis, vez ou outra, colocam o nariz na civilização e estão sujeitos aos mesmos problemas que os demais (com exceção dos que mudam para o Exterior).

 

Já se vão algumas décadas em que governos de diversas ideologias perderam a oportunidade de mudar este país e levá-lo para outro patamar de desenvolvimento. Basta visitarmos escolas ou hospitais públicos para verificarmos que o salto necessário não foi dado. É avassalador pensar que existia capacidade financeira para isso, vide as verbas impressionantes do BNDES destinadas às propinas.

 

Por isso, fico confusa ao ouvir impetuosas justificações a respeito da conduta de diversos personagens públicos envolvidos nos escândalos atuais. Sem a pretensão de julgar a simpatia por determinados partidos ou figuras políticas, apenas me sinto chateada ao perceber que certos debates ainda comparam as proporções dos desvios, como se alguma escala de imoralidade fosse relevante ou salvasse alguém no cenário. Ainda mais frustrante é perceber que muitas pessoas desejam o retorno de políticos já denunciados, como se a renovação política não fosse uma necessidade urgente.

 

Neste contexto, observo que são perspicazes as observações ou teorias elaboradas sobre os interesses envolvidos nas manifestações, nos movimentos que organizam protestos, nas diferentes mídias. Entretanto, a incoerência facilmente contamina os discursos quando há defesa de algum lado. Fatos recentes demonstram que o poder e o dinheiro se sobrepuseram a quaisquer ideologias.

 

Deveríamos nos unir em favor de causas, como a educação. Infelizmente, no Brasil desta década, ao defendermos partidos, movimentos ou até pessoas, arriscamos contribuir para a perpetuação de projetos de poder. E continuamos fora do pódio.

Inventário de tolices que importam

Fotografia por Unsplash

pes descalços

Pés no chão, eu encostava na pele do mundo. Ainda criança, corria pelas ruas e escalava em árvores no centro da cidade. Entrava nos porões em construção e machucava os joelhos nas cercas. Roubava bergamotas. Lembro enquanto bebo um vinho (e talvez porque esteja bebendo um vinho). Na borda da taça escorre uma vontade de pés descalços.

Aos domingos acordava cedo para assistir Formula 1. Depois da corrida, comia churrasco com salada de maionese. Eu sabia as cores dos capacetes, os patrocínios de cada piloto e anotava as colocações de cada equipe. Não dou a mínima para automobilismo hoje, mas pagaria mil garrafas deste vinho por aquele caderno, perdido desde que o passatempo acabou no domingo mais triste de 1994.

A bebida ainda está na metade, mas cabem nela as notas nostálgicas do mundo. Lembranças que seriam tolas, não fossem marcantes como taninos: “Você tem a faca, o queijo e meu coração nas mãos”. A poesia deste verso rasgava a tarde adolescente e eu o repetia na fita cassete dezenas de vezes. Já usava sapatos quando comecei a ouvir músicas em isolamento. E estava na faculdade quando dançava enlouquecidamente no carpete verde de um apartamento na Cidade Baixa: “To the gypsy / That remains / She faces freedom / With a little fear”.

Hoje eu desliguei a televisão, seus seriados inúteis, suas notícias ruins. Preferi sentir saudades de mim, de meus momentos (vergonhosos inclusive), minhas manias  e até de minhas tristezas. Um adorável inventário onde encontrei lembranças e objetos, como por exemplo uma pasta de escritório, onde arquivava letras de músicas, as quais fingia vender para grandes gravadoras. Uma foto onde me achava linda, só porque coloquei uma faixa colorida no cabelo, apesar das espinhas e do aparelho dentário. Encontrei testes bobinhos de revistas femininas igualmente bobinhas, que me faziam imaginar a mulher que um dia seria (felizmente imaginei errado). Encontrei também muitos poemas, rascunhos de versos borrados com lágrimas clichê, tortinhos e imaturos como deveriam ser quando a autora tem quinze anos.

Agora que o vinho acabou e antes que eu lembre de algumas bobagens mais sérias, peço licença para ligar a TV.

Portas abertas

IMG_0378As seis e vinte da manhã o ar é um grande bocejo. Além de um gato negro, poucos se aventuram na rua: o tio do tênis Nike, os dois caras de mochila que conversam sílabas, o sujeito de fone de ouvido e cara aborrecida, o entregador de jornais e eventualmente Jorge, que parece violento, mas desde que vive na rua, é a única vítima dos próprios berros.

Em meio a quase poesia das cores matinais, entre o canto de um bem te vi e a resposta de outro, observo os cuidadores de idosos saindo de algumas casas. Este é definitivamente o horário das trocas de turno.  Nestas residências há pouco movimento e seus moradores são como vizinhos misteriosos. Inusitadamente, numa dessas manhãs, uma senhora de cabelos brancos espiava por sua vidraça o movimento da rua. Fixou em mim por alguns instantes seu olhar sério.

Enquanto giro em ponteiros inquietos, pergunto-me o que fazem ela e os outros idosos do bairro? O que pensam e o que almejam enquanto sonho com um tempo livre? Sinto um abismo entre quem sai para trabalhar e os que ficam sozinhos e por vezes enfastiados em seus alpendres. Será que aprendemos como poderíamos com quem já percorreu nossos caminhos? Essas grandes cidades, inventadas para andarmos enlouquecidos de um lado a outro, parecem segregar sistematicamente as crianças, os adultos e os idosos ao longo do dia. É utópico e talvez seja efeito do sono da manhã, mas imagino meu bairro com todas as portas abertas. Assim como era (ou fantasio que era) o bairro da minha infância.

Ao lado da minha casa mora uma outra senhora que costuma sentar numa agradável varanda ao entardecer. No inverno não a vejo, mas no verão ela abana cada vez que passo ali. Eu sempre a cumprimentava e falava algumas palavras, até que um dia ela sinalizou que não conseguia ouvir. Mantive os gestos e percebi a irrelevância das palavras. Sem que exista qualquer história passada entre nós, seu sorriso simpático e significativo é claramente necessário para mim. Sinto sua falta no inverno e este sentimento humaniza a calçada por onde devo prosseguir.

A janela

ganeshaEntrei tímida na sala e estendi meu tapetinho no fundo, à direita, quase detrás da porta (eu não sabia que era o melhor lugar). O dia já havia enchido seus copos, era hora de derramá-los sobre as luzes do sol. Era hora de tomar a noite aos goles, de preferência sem a artificialidade das lâmpadas, sem os ruídos irritantes dos televisores. Ao fechar os olhos e aprumar as pernas para ficar em posição de lótus, percebi um sopro de vento fresco nas costas. Como um amigo que cutuca, o mundo contava-me seus planos de chuva.  Foi quando percebi que estava na frente de uma enorme janela, destas que nem caberiam nas esquadrias padronizadas dos condomínios.

Disfarçada por uma cortina onde balançavam Shiva e Ganesha, a janela era poética e ao mesmo tempo misteriosa. Um retângulo que abraçava minha timidez geométrica. Uma ponte para espiar o mundo enquanto eu procurava janelas em cômodos internos.

Trikônásana, o corpo suava. Katikásana, o corpo doía. Chatuspadásana, o corpo fervia. Shavásana, a melhor chuva em anos aconteceu porque meus olhos estavam ocupados e não podiam chorar. Era uma terça-feira singela e eu voltava para o ioga. Eu sentia câimbras e relembrava que elas não importam tanto quanto a forma de encará-las. A vida é repleta de machucados que não nos representam como nossas reações o fazem. Eu relembrava como é ser uma montanha, um cachorro e um leão. Como há dignidade e inteireza nas quedas. Como é bom cantar um mantra por todos os seres ao invés de orar por si próprio.

Era uma singela terça-feira e aconteciam chuvas e raios e sóis ao mesmo tempo em paisagens dentro e fora de mim.