O mundo vai acabar?

Crônica publicada no Jornal Zero Hora em 17 de novembro de 2021.

Já é a segunda vez que a minha filha Cecília, de sete anos, pergunta-me sobre o fim do mundo. Na primeira, o gatilho foi a sua primeira experiência com a morte. Se nós somos seres finitos, por que o nosso mundo não seria? Contraditoriamente, a segunda abordagem, emergiu de uma discussão sobre a existência do infinito – ela notou que jamais conseguiria contar todos os números – e esta conclusão a fez questionar a imensidão do mundo.

                É difícil dar respostas quando não as temos, ainda mais para crianças que tanto as anseiam. Pior é omitir meu real receio, não relacionado ao planeta em si, mas a extinção de nossa espécie. É cedo para contar-lhe sobre a insônia que tive, em 2017, após assistir a uma sessão do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change), onde os pesquisadores explicaram, de forma detalhada, as consequências catastróficas, como grandes crises migratórias, caso não se cumpram as metas de redução de emissão de gases.

                Tampouco devo contar sobre meu choro disfarçado, quando, em plena pandemia ouvi: “Mamãe, porque as florestas estão queimando?”, situação que se repetiu há poucos dias, quando assistimos juntas ao filme “Ainbo, a Guerreira da Amazônia”, infelizmente longe de ser uma ficção.

                 Acredito que não é preciso ter filhos para termos uma preocupação contundente com as próximas gerações, mas ao menos em mim, a experiência materializa a angústia. É triste constatar que a pauta ambiental é pouco valorizada no país que poderia ser líder mundial em energias renováveis e sustentabilidade – é sabido que estes pilares levarão ao desenvolvimento econômico e social no futuro. Ao invés disso, a crise energética, a escassez hídrica e o aquecimento global passam longe das prioridades do Legislativo e do Executivo, aliás, representado pobremente na última COP26, vide a ausência de planos tangíveis e do próprio presidente.

                Eu não posso acreditar que o mundo irá de fato acabar, mas toda vez que Cecília questiona, o tempo parece encurtar.

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Cor do Sol

Ilustração por Cecília Conz Kirst

“Sou mais esperta do que você, mamãe.”

Eu sei e assim desejo, mas para minimizar sua altivez, ao ouvir tal frase, expliquei-lhe indiretamente a importância da humildade, de que pessoas sempre tem o que aprender umas com as outras. Enfim, este é meu papel nesta história.

Cecília está aprendendo a ler e a escrever. Aos poucos, corrige as palavras e expressões que costumava usar erroneamente. Nunca ousei consertar o seu inspirador “cor do sol” e inclusive incorporei a palavra composta no meu dia a dia. Aliás, penso que o português poderia ser atualizado dinamicamente com a lógica das crianças, as quais adaptam a linguagem ao sentido de suas descobertas.

“Desbagunçar”, “caienta”, “odeiei”, são exemplos de construções que em breve ela abandonará, mas que estarão mais do que corretas no meu dicionário materno (e eterno).

Cecília está vivenciando uma explosão de descobrimentos. Enquanto brinca, faz dezenas de perguntas e afirmações. “Eu sei porque os carros baixos andam mais rápido.” “Eu sei porque a ponte móvel existe.” “Para que existe a Lua, se ela não ilumina o mundo?” Cecília também exige que seja incluída em todas as conversas: “Não falem mais deste assunto sem me chamar!” Às vezes o assunto é o conserto do aquecedor a gás.

E agora faz perguntas difíceis sobre os noticiários: “Mamãe, o que é índice de aprovação do presidente?” “Por que as florestas estão queimando?”

Cecília também está observando o mundo com empatia e senso crítico. Disparou, ao ver os operários de uma obra ao lado da nossa casa, num dia de inverno: “Eles não podem trabalhar hoje, está muito frio!”

Barcos a vela também conseguem navegar contra o vento. Assim vejo as crianças, com suas mentes curiosas, criativas e puras atravessando um mundo cheio de turbulências, porém de ideias retilíneas.

Hoje é o aniversário de Cecília. Enquanto ela apagar sua vela ao desejar algum brinquedo, não saberá que dentro de mim, há seis anos, existe uma chama indelével e orgulhosa, com a qual farei um pedido: vou desejar que ela sempre seja mais esperta do que eu. Que a sua curiosidade e espontaneidade sempre a acompanhem, seja com o vento contra ou a favor.

Crônica escrita em 03 de setembro de 2020.

Cecília completou seis anos em um dia chuvoso e em pleno isolamento social. Mesmo assim, seu dia foi alegre e colorido. Cecília pulou, cantou, correu e abriu presentes.

O Sorriso de Caio

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Que Monalisa que nada! O sorriso preeminente em minha vida é o do Caio.

Em plena pandemia – na verdade um pouco antes dela, já que estamos confinados desde que ele nasceu, há alguns meses – Caio deu seu primeiro sorriso tímido numa manhã de domingo. Desde então não parou.

Caio sorri ao acordar, ao tomar banho e nas trocas de fraldas. Sorri até ao despertar aos prantos na madrugada, quando nota que alguém o acudiu. Sorri quando está se contorcendo de dor de barriga, se você o provocar com uma brincadeira.

Mas há algo especial no seu riso além da frequência – uma doçura que espelha sua personalidade. Em seu rosto de apenas quatro meses, olhares e sorrisos combinam-se e transmitem amorosidade. Vai ver é somente um derretimento do meu coração materno e exagerado.

Quando Caio morava em mim, eu sentia um certo receio pela sua calmaria. No entanto, foi uma dadiva tê-lo tido como um visitante tranquilo em meu ventre, enquanto a vida sacudia-me num pandeiro sobressaltado. Seu sorriso remansoso é tudo o que eu preciso receber e repercutir ao mundo neste momento.

Você pode dizer que Caio sorri porque sua ingenuidade é alheia ao que está acontecendo lá fora: juntamente com uma pandemia sem precedentes, estamos sendo bombardeados pela ignorância politica diária, o egoísmo fantasiado de liberdade individual, a crise econômica, as milhares de mortes, a negação da ciência e a destruição impudente do meio ambiente.  Entretanto, quando um bebê reage com alegria e ternura a olhares, palavras e gestos de carinho, ele nos relembra de algo básico sobre nossa espécie, que nos acompanha desde o nascimento: somos movidos e nos desenvolvemos desde a primeira infância devido ao amor e ao afeto. Esta simples verdade que Caio escancara diariamente pode ser o motivo pelo qual devemos salvar-nos; afinal, se estamos a espera de uma vacina que nos cure completamente, alguns antígenos estão ali, nos primeiros meses de nossas vidas. 

Junho de 2020

Caio nasceu em Janeiro de 2020. Quando nos preparávamos para seus primeiros passeios, o isolamento social devido ao vírus COVID-19 iniciou em Porto Alegre. Desde então, Caio está confinado e aprendendo sobre o mundo pela perspectiva de uma só casa. Enquanto vibramos e sorrimos com suas primeiras experiências e descobertas, os jornais escancaram tristes notícias e os cientistas e profissionais da saúde trabalham como nunca.

Caio já nasceu

Foto por Gane Coloda. GC_VaneCaio-148

Entre as convenções já criadas neste mundo, está a de que uma pessoa nasce quando sai do útero de sua mãe. Deixarei o cartório pensar assim, mas o aniversário de Caio será antes, ao menos para mim. Caio nasceu quando começou a soluçar, o que ocorreu há uns dois meses. Você poderia dizer que uma pessoa não nasceu se ela soluça após as refeições? Nós comemos, ele soluça.

Caio parece calmo, como um peixe tranquilo de caudas para cima. Poucas vezes chuta minhas costelas e quando o faz, é com delicadeza. Ao contrário de sua mãe, fica agitado com música e ioga. Gosta de ficar enrolado com os pés e mãos na cabeça e daí surgiu seu apelido: tatu-bola. Afinal, alguém que já nasceu pode ter um apelido. E o fenômeno é visível: quando deslizo as mãos pelo lado direito da minha barriga, uma bolinha aparece e desponta, como se ele fosse realmente um bichinho enrolado e arrepiado.

Caio já tem oito meses de vida – por isso entendo que, por mais que meu ventre estique e estique, neste ponto nós dois estamos espremidos e cansados. Ele reclama se durmo virada para os lados direito ou esquerdo. De barriga para cima, concorda apenas se a coluna ficar bem ereta, o que torna nossas madrugadas insones e com frequentes negociações.

Ao dividir com ele meu corpo, minhas horas, meus nutrientes, amplio meu cansaço e aprendo que estarmos vivos, dentro ou fora de um útero, requer abraçarmos a multiplicidade das experiências, suas dificuldades e seus prazeres. A vida real aperta, espreme e ao mesmo tempo abraça e conforta. Haja coragem. Compartilhar a vida com um novo ser, seja através da experiência da gestação ou não, é desconfortável e as vezes dolorido. Mas não há outra estrada que nos prepare e nos direcione melhor para o afeto e a entrega, forças humanas tão poderosas, que fazem valer uma existência e já me fazem amar Caio apenas por senti-lo soluçar.

Inventário de tolices que importam

Fotografia por Unsplash

pes descalços

Pés no chão, eu encostava na pele do mundo. Ainda criança, corria pelas ruas e escalava em árvores no centro da cidade. Entrava nos porões em construção e machucava os joelhos nas cercas. Roubava bergamotas. Lembro enquanto bebo um vinho (e talvez porque esteja bebendo um vinho). Na borda da taça escorre uma vontade de pés descalços.

Aos domingos acordava cedo para assistir Formula 1. Depois da corrida, comia churrasco com salada de maionese. Eu sabia as cores dos capacetes, os patrocínios de cada piloto e anotava as colocações de cada equipe. Não dou a mínima para automobilismo hoje, mas pagaria mil garrafas deste vinho por aquele caderno, perdido desde que o passatempo acabou no domingo mais triste de 1994.

A bebida ainda está na metade, mas cabem nela as notas nostálgicas do mundo. Lembranças que seriam tolas, não fossem marcantes como taninos: “Você tem a faca, o queijo e meu coração nas mãos”. A poesia deste verso rasgava a tarde adolescente e eu o repetia na fita cassete dezenas de vezes. Já usava sapatos quando comecei a ouvir músicas em isolamento. E estava na faculdade quando dançava enlouquecidamente no carpete verde de um apartamento na Cidade Baixa: “To the gypsy / That remains / She faces freedom / With a little fear”.

Hoje eu desliguei a televisão, seus seriados inúteis, suas notícias ruins. Preferi sentir saudades de mim, de meus momentos (vergonhosos inclusive), minhas manias  e até de minhas tristezas. Um adorável inventário onde encontrei lembranças e objetos, como por exemplo uma pasta de escritório, onde arquivava letras de músicas, as quais fingia vender para grandes gravadoras. Uma foto onde me achava linda, só porque coloquei uma faixa colorida no cabelo, apesar das espinhas e do aparelho dentário. Encontrei testes bobinhos de revistas femininas igualmente bobinhas, que me faziam imaginar a mulher que um dia seria (felizmente imaginei errado). Encontrei também muitos poemas, rascunhos de versos borrados com lágrimas clichê, tortinhos e imaturos como deveriam ser quando a autora tem quinze anos.

Agora que o vinho acabou e antes que eu lembre de algumas bobagens mais sérias, peço licença para ligar a TV.

Luz no início do túnel

20170514_1901571.jpgArte: Rogério Weber Kirst

Minha mãe varre o chão enquanto finjo dormir no sofá. Meu pai chega e comenta algo sobre como eu pareço cansada. Adoro estar em casa e ainda não ter tirado o uniforme da escola. Sinto fome, mas a preguiça é e sempre será irresistível.

Esta é uma cena antiga, armazenada como um pequeno vídeo aqui dentro de mim. Se a descrevesse amanhã, talvez os mesmos detalhes não seriam lembrados. Pequenas memórias são flashes que inundam meu cérebro. Arquivos que, se fossem colados uns nos outros, transformariam-se em filmes ou seriados particulares. Por ora, são apenas pedaços de uma vida em vídeos independentes.

Esforço-me para encontrar outros ângulos e experiências, pois sinto que me transformo a cada recordação. De certa forma é angustiante saber que vivi momentos dos quais não lembro ou pensar que muitos fragmentos de minha existência estão em memórias alheias.

Seria uma estupidez andar por aí farejando arquivos? Ainda não sei. Nesta busca há um túnel escuro, onde alguns anos somem por completo.  Dizem que esquecemos certas coisas por conveniência e consertamos outras memórias a nosso gosto ou para o nosso bem estar. Pensar nisso é cansativo.

Ao vasculhar lembranças percebo que vou armazenar algumas memórias da minha filha. Serei responsável por filmar e editar algumas de suas primeiras experiências. Como irei, lá no futuro, contar a ela o que agora vejo? A resposta é tão abstrata quanto são os meus primeiros passos, mas desde que ela nasceu uma pequena luz está acesa no início do meu túnel. Agora, ao menos, posso imaginar meus primeiros anos de vida enquanto a observo.

Assim, de carona, redescubro vivências: o contato com a água, esquiva e a mesmo tempo invasiva; o cubo de gelo que, em sublime contradição, machuca os poros e alivia a dor; o sentido das saias, que ao serem colocadas no corpo, instantaneamente nos vestem com a liberdade.

Relembrar é sem dúvida viver, mas redescobrir é ampliar a intensidade das experiências.

Assim eu rodo, em saias e lembranças que se misturam e não sei se são minhas ou dela.

 

Crônica escrita em julho de 2016.

{Em julho de 2016 Cecília tinha um ano e dez meses, já havia descoberto a fugacidade das bolhas de sabão e a maciez do algodão. Não resistia aos cubos de gelo. Queria tocar em todas as árvores e todas as folhas. O mundo aparecia em todos os seus sentidos.}

Jogo da Vida

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Eu organizava as peças do jogo da vida como se ensaiasse para um futuro distante. Não era apenas uma brincadeira, era uma chance de apalpar o poder adulto. Guiava meu carrinho com seriedade. A roleta e suas dez possibilidades eram as faces de um destino em números. Ela era incisiva em suas decisões, traçava idas e voltas e ensinava que andar nem sempre é para frente.

No jogo, aprendi que o sucesso está a uma casa do fracasso, que encher o carrinho com seis filhos e ser professor não é um bom negócio, melhor é ser médico e investir na bolsa de valores. O jogo não me dava a chance de realizar muitas escolhas, ele decidia qual seria a minha profissão e travava as alternativas amorosas. Passando em frente à igreja, o pininho azul tinha que entrar no carrinho rosa obrigatoriamente. O objetivo mais nobre era ser magnata. Se não fosse possível, o ganhador era simplesmente o mais rico ao final. Quem decretasse falência, deveria se retirar ao campo e virar filósofo (hã?).

Ainda guardo meu exemplar do jogo em uma caixa empoeirada. O tabuleiro colorido preserva as impressões digitais dos meus dedos pequenos. Lá estão meu primeiro carro, meus primeiros filhos e minha primeira casa.

Hoje, porém, eu jogo num tabuleiro diferente. De certa forma, decepciono a menina que ensaiava seus passos naquela trilha previamente desenhada. Não sou médica, nem advogada. Filhos, só uma. Nenhum cartão de riqueza, nem seguro do carro. Estou mais para filósofa do que para magnata. Prefiro o campo à cidade. Em comum entre o jogo antigo e a minha vida, estão as idas e vindas e algumas casas onde paro em função da sorte. No jogo atual, volta e meia decido onde estaciono meu carrinho. Sem ensaiar, sem a pretensão de ganhar e, principalmente, sem querer chegar ao final do tabuleiro.

Escrita em 2010.

A Lua não veio

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A lua não veio, mamãe.

Fim de tarde, o céu ainda claro, a primavera a suplantar o inverno. Como explicar?

A lua vai chegar mais tarde, com a noite e as brilha brilhas.

Daqui a pouco minhas respostas não serão convincentes. Seus porquês virão em série, como testes de revista a provar que eu estudei o suficiente para um dia, entre outras realidades, ser sua mãe.

Como o Sebastião daquela música, você me perguntará porque iremos viajar no verão.

E eu viajarei na Wikipédia, lerei novamente os clássicos, estudarei o céu e solstícios, a biologia marinha, o fitoplanctum, Marx, Lenin e Lenine. Mesmo assim eu não serei capaz de lhe dar todas as respostas.

É a tal incompletude humana, que nos move a sermos um pouco melhores hoje do que ontem. Por sorte o ensinar não se resume às explicações, envolve sobretudo a elucubração e a transformação do que está sendo discutido.

Meus pais, por exemplo, ensinaram-me a cultivar uma horta de mãos sujas. A bibliografia nem sempre importa.

O calendário já está ansioso porque um dia você vai descobrir que também me educa, mesmo que eu tenha nascido trinta e cinco anos antes, mesmo que eu tenha sido sua casa por um tempo.

Todo filho, em algum momento, percebe que seus pais são apenas luas em órbita, ora imponentes, ora minguantes. Cheios ou incompletos. Sábios ou inseguros. Assim como o móbile de sóis amarelos em seu berço, que você chama de “Céu da Cecília”, estamos todos dançando, sujeitos às mudanças de estação e às aleatoriedades do universo.

Escrito em agosto de 2016.

{Cecília tinha quase dois anos quando começou a procurar no céu a Lua, as estrelas – brilha brilhas – e o sol. Enquanto ela segue a descobrir os astros e as diferenças entre o dia e a noite, cientistas realizam suas descobertas espaciais. Em 2016 foram revelados nove planetas fora do sistema solar que poderiam apresentar condições para a vida.}

 

A biblioteca do Frei Caneca

                                                                                                                                     Selected by freepik

digital composite of Wooden table with library background

            O lugar mais importante do mundo (ao menos do meu ângulo emocional) é a pequena biblioteca da escola Frei Caneca, lá na rua Maria Dal Conte, na pequena Flores da Cunha.

           Silenciosos eram os minutos em que, sossegada, eu percorria contracapas e ilustrações em busca da próxima leitura. Hoje entendo que era gigante a pequena estante de livros, assim como o ritual envolvido: escolher um título, preencher a ficha de entrega, procurar por eventuais rabiscos de colegas nas páginas e por vezes espiar o último parágrafo.

            “Livros são os mais silenciosos e constantes amigos”, definiu Charles Elliot. Lembro-me de preencher listas com o nome das obras lidas, seus autores e uma pequena avaliação de gosto: bom, ótimo ou regular. Na quinta ou talvez sexta-série, minha lista de amigos de papel chegou a trinta e nove exemplares no ano (número digno de uma orgia literária para um adulto). No Frei Caneca, conheci as clássicas coleções Vagalume e Reencontro; os livros regionais, como os do Charles Kiefer; e sem saber da existência da palavra catarse, mergulhei nos poemas de Drummond.

            A seção de poesia era minúscula­ ­­— nada diferente de qualquer livraria — e nela conheci o Quintana pelo título curioso “Caderno H”. A obra tornou-se quase um livro de autoajuda tamanha a sagacidade das frases curtas. Em meio ao tédio da pré-adolescência, não recordo de outro livro que eu tenha folheado mais.

           “Canção Quase Inquieta”, o poema de Cecília Meirelles, foi outro tesouro que a biblioteca me entregou e é uma prova de que a literatura é uma das poucas riquezas compartilhadas pela humanidade. Este poema é o único que decorei até hoje e eventualmente ainda o sussurro: “de um lado, a eterna estrela / e do outro a vaga incerta, / meu pé dançando pela / extremidade da espuma / e meu cabelo por uma / planície de luz deserta…”.

             Cecília me abraçou ainda criança e é dela o nome da minha filha. Queria ter muitos filhos para presenteá-los com os nomes dos autores que transformaram meu destino desde aquela época: Quintanas, Drummonds, Melvilles, Vernes.

             Uma biblioteca no interior é uma prova contundente e inquestionável de que livros são janelas, assim como a frase clichê repetiu. É a certeza de que haverá pensar num mundo rodeado de entretenimentos espetaculosos e por vezes escravizantes. Acredito no poder reflexivo e questionador dos livros, seus atalhos à imaginação, seus parentescos com a filosofia; as ideias discutidas em silêncio, o tempo infinito para assimilação, o despertar de memórias. Ainda, a liberdade da discordância (que nem sempre a discussão falada respeita) e por fim, o pensamento crítico fluído e transformador a salvo de um mundo atarefado e frenético.

Escrita em Julho de 2016.

Crônica vencedora do 12º Prêmio Literário Mário Quintana  – categoria regional